sábado, 4 de junho de 2011

Habeaspinho

Em 1955, em Campina Grande, na Paraíba, um grupo de boêmios fazia serenata numa madrugada do mês de junho, quando chegou a polícia e apreendeu o violão. Decepcionado, o grupo recorreu aos serviços do advogado Ronaldo Cunha Lima, então recentemente saído da Faculdade e que também apreciava uma boa seresta. Ele peticionou em Juízo para que fosse liberado o violão. Aquele pedido ficou conhecido como "Habeas-Pinho" e enfeita as paredes de escritórios de muitos advogados e bares de praias no Nordeste. Mais tarde, Ronaldo Cunha Lima foi eleito Deputado Estadual, Prefeito de Campina Grande, Senador da República, Governador do Estado e Deputado Federal.
 
Eis a famosa petição:

Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da 2ª Vara desta Comarca:
 
O instrumento do crime que se arrola
Neste processo de contravenção
Não é faca, revólver nem pistola
É simplesmente, doutor, um violão.
 
Um violão, doutor, que na verdade
Não matou nem feriu um cidadão
Feriu, sim, a sensibilidade
De quem o ouviu vibrar na solidão.
 
O violão é sempre uma ternura
Instrumento de amor e de saudade
Ao crime  ele nunca se mistura
Inexiste entre eles afinidade.

O violão é próprio dos cantores
Dos menestréis de alma enternecida
Que cantam as mágoas e que povoam a vida
Sufocando suas próprias dores.
 
O violão é música e é canção
É sentimento de vida e alegria
É pureza e néctar que extasia
É adorno espiritual do coração.
 
Seu viver, como o nosso, é transitório
Porém seu destino se perpetua
Ele nasceu para cantar na rua
E não para ser arquivo de Cartório.
 
Mande soltá-lo pelo Amor da noite
Que se sente vazia em suas horas
Para que volte a sentir o terno açoite
De suas cordas leves e sonoras.

Libere o violão, Dr. Juiz
Em nome da Justiça e do Direito
É crime, porventura, o infeliz
Cantar as mágoas que lhe enchem o peito?
 
Será crime, e, afinal, será pecado
Será delito de tão vis horrores
Perambular na rua um desgraçado
Derramando ali as suas dores?
 
É o apelo que aqui lhe dirigimos
Na certeza do seu acolhimento
Juntando esta petição aos autos nós pedimos
E pedimos também DEFERIMENTO. 

Ronaldo Cunha Lima, advogado.

O juiz Arthur Moura, sem perder o ponto, deu a sentença no mesmo tom:

"Para que eu não carregue remorso no coração
Determino que seja entregue ao seu dono
Desde logo, O malfadado violão!“

Recebo a Petição escrita em verso
E, despachando-a sem autuação
Verbero o ato vil, rude e perverso
Que prende, no cartório, um violão.

Emudecer a prima e o bordão
Nos confins de um arquivo em sombra imerso
É desumana e vil destruição
De tudo, que há de belo no Universo.

Que seja Sol, ainda que a desoras
E volte à rua, em vida transviada
Num esbanjar de lágrimas sonoras.

Se grato for, acaso ao que lhe fiz
Noite de lua, plena madrugada
Venha tocar à porta do Juiz."

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